Este texto é uma homenagem ao nosso poeta Drummond, o menino itabirano que aprendeu a voar!
Texto: João Carlos de Souza Gonçalves
Revisão: Professora Leda Maria Lage Carvalho
O menino corria pelos corredores do sobrado do Coronel, seu pai, esgueirando se e, por pouco, não esbarrando nos móveis de madeira de lei. Queria vislumbrar, pela janela do quarto de seu irmão mais velho, as primeiras estrelas que surgiam por trás do velho Pico. Itabira, sua cidade, era então, isso por volta de 1910, uma simplória e modesta vilazinha que se escondia por trás de um imponente gigante – o Pico do Cauê!
Quando a tarde terminava e a noite desfiava as primeiras estrelas anunciando sua chegada, Carlos colocava-se diante da janela, praticamente dependurado, para contar as estrelas e tentar descobrir, desenhando com a ponta dos dedos, as mesmas constelações que ilustravam seus livros. Aquele momento era sempre acompanhado pela velha Sá Maria, sua mãe preta, por quem o menino tinha uma afeição de mãe verdadeira.
Limpando as mãos em um surrado avental, a Preta Velha saía de sua cozinha, passava pelos ambientes do sobrado, com passos firmes e olhar sério, mirando, como de costume fazia, o braço do menino, que debruçado na janela, se equilibrava para não cair. Aquela mulher era o anjo de todos do sobrado e não media esforços para defender, até mesmo com um cabo de vassoura, cada um dos Andrades. Porém, sua maior atenção voltava-se para o pequeno Carlos, que apesar do corpo franzino, rosto afinado e aspecto frágil, aprontava muito e fazia da vida de Sá Maria um “Deus nos acuda”!
Quando escapulia dos olhos da sua mãe preta, o menino do Coronel corria para a rua e entregava-se às brincadeiras com os amigos. Atrás da escola, subia em um pé de jabuticaba com a mesma facilidade com que catava os degraus da escadaria da sua casa. Não pela ausência de uma frondosa jabuticabeira em seu quintal, mas porque todos sabiam ali, que o fruto roubado era bem mais gostoso e tinha um outro sabor.
Encostado em um dos galhos, Carlos olhava a sua volta e, entre uma jabuticaba e outra, notava que seus amigos de bagunça, apesar de desfrutarem dessas vivências de infância, tinham uma vida diferente. Um era filho de pedreiro, outro já aprendia ofício de alfaiate com seu pai. Um deles dividia seu tempo entre a rua e sua mãe, a quem ajudava com dedicação, levando trouxas de roupas para lavar no córrego da Água Santa. Então, uma melancolia tomava conta do menino, pois logo pensava que nenhum deles teria permissão para entrar no Sobrado do Coronel e sentar em suas poltronas, que só seriam ocupadas por traseiros que tivessem um pomposo sobrenome e boa representação naquela pequena cidade mineira. Os pobres meninos descalços, que mais se assemelhavam à Sá Maria do que a seus pais, não poderiam ver pelas imponentes janelas da sua casa, a beleza do velho Pico; nem teriam a possibilidade de dividir com Carlito a sensação de, no conforto de sua casa, pelas amplas janelas do Sobrado, investigar as estrelas em busca das constelações sobre as quais tanto lia em seus livros. O que bastava a todos era o fato de que, quando convidados por Sá Maria, podiam entrar pelos fundos, tomar água e, na saída, ganhar um pedaço de quitanda da tarde.
Sá Maria contava apenas com o conhecimento que a vida lhe oferecia, pois era uma mulher sem instrução e nunca havia estudado. Mesmo sem lidar com as letras, ela aquecia as noites do menino com histórias que nunca encontraria nos livros que seu pai mandava buscar na capital. Nas enciclopédias, o menino aprendia sobre mitologias, ciências e a geografia do mundo; já no colo de sua mãe preta, ele viajava para um universo bem mais próximo, cercado por lobisomens, sacis e personagens que, embora fossem também folclore, eram figuras presentes na história da sua cidade.
Sua mãe preta foi a responsável por despertar o mundo daquele menino para o imaginário. De fazê-lo buscar, além do que sabia aquela senhora de traços marcados pelo tempo. Com a cabeça encostada sobre o colo de Sá Maria, as histórias aconteciam para Carlos e o mundo desdobrava-se sobre seus olhos cerrados com o ninar da voz rouca da sua preta velha.
Carlos corria pela casa como uma cutia, alimentado pelo desejo de descobrir um mundo que estava além do Pico que cobria sua cidade. As histórias de Sá Maria deram lhe asas e agora, era pouco para ele procurar estrelas entre os livros doados por seu pai; era preciso mais! Iria saltar pela janela e voar em direção ao infinito, tomando posse de seus alqueires celestes, assim como o avô fazia na terra, o que levaria Carlito futuramente a transformar-se em um fazendeiro do ar. Descalço, ele subiu e ficou em pé na janela do sobrado, e fechando os olhos, deixou-se levar pelo ar. Seus braços abertos davam a direção de seu voo, que tomava contornos pelos céus de Itabira.
Carlos, finalmente voava assistido pelos olhares piedosos de sua mãe Julieta e pela euforia dos meninos que se apertavam no adro da matriz, com seus pés descalços e chapéus nas mãos. Todos saiam de suas casas e, sem acreditar no que os olhos miravam, acenavam e apontavam para o menino voador. Carlos abria os braços e rodopiava por entre as nuvens. Viu lá do alto, a fazenda da família e, pelos campos, montado a cavalo, via seu pai contemplando seu poder. Antes, porém, de atravessar a fronteira do velho Pico e ganhar o mundo, o menino sobrevoou por mais uma vez seu Sobrado e contemplou sua Sá Maria, despercebida, vendo o tempo passar enquanto separava o feijão.
O menino esticou o corpo como uma flecha e alçando vôo pelos céus, tomou posse de sua arte. E à medida que se firmava, já muito longe dos olhares de Sá Maria, percebia que as desigualdades e as diferenças estavam bem além das paredes do sobrado. O caminho agora era apenas seu, e nele, além das agruras que o tempo certamente colocaria no meio dessa jornada, teria também o sabor e o deleite de várias paixões. Assim, Carlos caminhou por entre suas terras celestes, puxando pelas rédeas suas estrelas.
Parabéns! Você escolheu a pessoa certa para fazer revisão, a Leda conhece muito da vida de Drummond. O texto é lindo. Fiquei encantada e deu vontade de voar com o menino. rsrs
ResponderExcluirTenho vontade de publicar umas poesias. Posso mandar para você ai?
ResponderExcluirah, gostei do texto. O blog é muito bom também.
ResponderExcluirCaroline, envia seus poemas para itabira@msn.com que publicarei aqui com prazer! Este espaço é nosso!!!
ResponderExcluirMuito bom!
ResponderExcluirporque o melhor jeito de voar é imaginar. as palavras, as cores, fazem alçar mundo.
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